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O autor |
A
literatura regionalista é uma constante em todo o universo das letras no
Brasil. São muitos os autores que resolvem usar seus escritos para divulgar as
características do seu lugar, sua natureza, o povo, os costumes, o modo de
falar, as mazelas sociais, as belezas naturais. Em seu romance “Ave, Marajó!”,
o escritor José Maria de Lima se valeu desse estilo para revelar, com
minuciosos detalhes, os aspectos mais significativos de sua terra natal, o Marajó.
José
Maria de Lima nasceu no município de Muaná, localizado no maior arquipélago
flúvio-marítimo do mundo, em 1933. Com graduação em pedagogia, o escritor
sempre se interessou por registrar no papel as características de sua terra,
repleta de contradições. Com tramas que retratam o cotidiano e os conflitos do
povo marajoara, é transmitido um pouco de sua essência. Recebeu o premio Samuel
Wallace Mac-Dowell da Academia Paraense de Letras, além de ter recebido menção
honrosa no Premio Dalcidio Jurandir 2012 na categoria romance.
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A capa do livro |
Antes
de iniciar a história, o autor faz uma descrição em prosa, mas com
características poéticas, em que ele apresenta aspectos naturais do Marajó,
tratando a ilha quase como se trata uma pessoa, dotada de sentimentos e atitudes.
Com esse capítulo deslocado da história, o autor visa introduzir no cenário em
que se passarão os acontecimentos e criar um laço de familiaridade com as
características naturais do local, dessa forma, o autor, desde já, imprime uma
das principais marcas de sua obra, a divulgação do Marajó.
A
protagonista da história é Regina Glória, uma jovem professora que é
apresentada no primeiro capítulo. Regina pertence a uma rica família, seus pais
são José e Julieta Silveira Borborema; os três são frequentadores assíduos da
alta sociedade de Belém do Pará, onde moram.
A
vida cheia de luxos e requintes da jovem muda quando ela conhece Jorge Ramires,
um rapaz que tinha sido enviado para estudar na capital e que era natural da
Ilha do Marajó, sobre a qual Regina Glória, até então, só ouvira falar. Os dois
se apaixonam instantaneamente e iniciam um namoro que, mesmo sob os olhares
preconceituosos da sociedade e desconfiados da família da jovem, acaba
culminando com o casamento dos dois. Foi tão intenso e tão rápido que, pouco
tempo depois de se conhecerem, o casal tinha a impressão de terem vivido juntos
a vida inteira.
Na
relação entre Ramires e a família de sua amada, o autor aborda o tema do
preconceito social praticado pelas classes dominantes. Ramires não é pobre, sua
família possui muitas terras no Marajó, porém o rapaz teve uma criação
interiorana, seus traços rústicos e despojados lhe são muito fortes, e isso
incomoda muito os pais de Regina, os quais queriam um marido fino e elegante
para a filha.
Regina
vai morar com o amado no lugar onde ele se criou, o estranhamento inicial foi
muito grande, a jovem era uma pessoa extremamente acostumada com vida urbana,
mas a paixão do casal foi mais forte e eles passaram a enfrentar juntos todas
as dificuldades e, aos poucos, a moça da cidade grande vai se adaptando com a
vida na fazenda. Regina passa a ajudar na administração da propriedade. Usando
de seus conhecimentos, ela opina sobre a criação do gado, a forma de lidar com
os empregados, até mesmo a alimentação dos criados é observada pela professora.
A
vida do povo simples do Marajó é retratada fielmente pelo autor, que revela
toda a exploração e ignorância em que vivem os habitantes daquela terra. O
livro ganha um caráter histórico-social quando reflete sobre as possíveis
causas e soluções para a situação do povo pobre do Marajó.
A
vida do casal percorria um caminho de normalidade, com os dois cuidando dos
negócios da fazenda, até que uma ideia surge na cabeça da esposa. Já há um bom
tempo no Marajó, Regina não conhecia bem a história do lugar, os conflitos, as
pessoas ilustres, os acontecimentos importantes. Visando desenvolver um
aprofundado trabalho de pesquisa sobre o local e usando de toda a metodologia
aprendida nos estudos acadêmicos, a curiosa exploradora sai em busca de tudo o
que puder lhe trazer informações que interessam ao seu objetivo e, para isso,
ela entrevista pessoas, consulta documentos, compara dados; todos os
procedimentos que uma profissional da área precisa realizar para alcançar o
objetivo de sua pesquisa.
Usando
do projeto de Regina, o autor conta algumas histórias do Marajó, histórias
essas que, se são verdadeiras ou inventadas, pouco importa, suas riquezas estão
no conteúdo que varia do cômico ao ridículo, do dócil ao amedrontador. As
narrativas que, em sua maioria, tem grandes proprietários de terra como
protagonistas, ainda hoje povoam o imaginário do povo marajoara.
A
história sofre uma grande reviravolta quando Regina tem de regressar à Belém
para acompanhar a mãe em uma cirurgia e cuidar dela enquanto estiver
convalescente. Tendo de se reacostumar com o ritmo da cidade grande, Regina
tenta reviver seu tempo de solteira. Entre um evento e outro, ela acaba se
envolvendo com um famoso médico, o mesmo que fez a cirurgia em sua mãe. Mesmo
atormentada pelo sentimento de culpa, a jovem mergulha fundo no caso com o
doutor.
Esse
acontecimento da trama explicita bem a hipocrisia da classe dominante na
sociedade belenense, a mulher casada, que é respeitada por pertencer a uma
tradicional família, acaba envolvendo-se com um homem que também é casado e que
também é admirado pela sociedade, ambos são frequentadores da alta sociedade.
Os pais de Regina, apesar de aparentarem um sólido casamento, também praticam o
adultério mutuamente, o que revela a vida de fachada e aparências que levam.
Para
surpresa da protagonista, ao voltar para o Marajó, ela descobre que o marido,
assim como ela, tinha se envolvido em um caso extraconjugal, e que estava
gastando fortunas para manter a amante. Sentindo-se moralmente impedida de
julgar o marido, Regina adota uma postura de compreensão para com ele, visando
salvar o casamento tão afetado pela infidelidade de ambos. Mas o estrago foi
grande demais, Ramires estava perdidamente apaixonado pela amante e, mesmo
depois de ela ter casado com um fazendeiro rival, o obstinado esposo de Regina
não desistia de reconquistar a ex-concubina.
Toda
essa paixão só podia acabar em tragédia, Ramires acabou sendo assassinado pelo
marido da mulher que queria conquistar, a notícia de sua morte espalhou-se pela
região e gerou uma grande comoção entre as pessoas, pois apesar das últimas
atitudes descontroladas, Ramires tinha a admiração de boa parte da população.
A
morte de Ramires revela outro aspecto sobre o Marajó que o autor queria
ressaltar, a violência nos campos e suas causas que, na maioria das vezes, são
brigas por terra. Na trama, o motivo foi uma mulher, que no início da narrativa
apareceu como a inocente filha de um vendedor ambulante árabe, mas que acabou
arrebatando o coração de muitos homens e, por isso, tornou-se motivo de
discórdia.
Atormentada
pela dor de ter perdido o marido e sentindo-se culpada, Regina sofre muito com
o acontecido. Os empregados da casa percebem o estado da patroa e tentam fazer
alguma coisa para fazê-la voltar ao normal, porém nada pode apagar os
questionamentos da mulher; e se ela não tivesse traído o marido? E se tivesse
sido uma companheira mais dedicada e atenciosa? Tudo isso perturba Regina e a
faz pensar em uma forma desviar sua atenção para outra atividade.
A
jovem fazendeira tem uma atitude ousada, entra na Associação dos Criadores de
Gado do Marajó, uma entidade até então dominada por homens. Com sua aguçada
habilidade de oratória e sua beleza encantadora, rapidamente Regina assume uma
postura de liderança, o que facilita para que ela exponha seus ideais
inovadores sobre a pecuária no local.
Foi
nessa associação que Regina conheceu um fazendeiro conhecido como Duca Malato,
foi através dele que ela teve notícia de uma pessoa que podia realizar o desejo
que estava guardado do mais íntimo do seu coração. Desde que Ramires morreu,
Regina procurava uma forma sobrenatural de entrar em contado com o marido, Duca
Malato conhecia um famoso médium chamado Raimundo Nonato. Foi através do
curioso “pajé” que a protagonista da história pode, finalmente, entrar em
contato com seu falecido cônjuge, esclarecer suas dúvidas e desculpar-se pelos
erros cometidos.
A
história que, durante todo seu desenvolvimento, segue uma linha racionalista,
no final, camba para o sobrenatural, revelando seres míticos e explicações
fantásticas para os acontecimentos naturais. Isso também retrata o misticismo
que ainda povoa a mente de boa parte do povo marajoara.
O
romance de José Maria de Lima, por se enquadrar no regionalismo, ressalta as
características do Marajó, mas também apresenta histórias que são comuns a
várias realidades, além do mais, o autor imprime um humor torna a leitura
agradável. Por esses motivos e por muitos outros, “Ave, Marajó!” se apresenta
como uma ótima leitura.